segunda-feira, junho 02, 2008

Pós-barbárie

“Auto-escola, também é cultura” é uma frase sintomática do tempo pós-moderno. As auto-escolas são escolas nas quais se aprende a dirigir autos. Automóveis, estes, que são os símbolos máximos da rapidez, do movimento, do individualismo, da massificação, da virilidade, dos desejos da sociedade burguesa, da produção sistemática e alienante; enfim, pode-se dizer que são a essência da sociedade moderna atual[1]. Quem frequenta tais lugares é, geralmente, um público muito fácil de definir: são jovens de classe média baixa até classe altíssima, dos dois sexos, que mal completaram seus 18 anos se inscrevem para receber o que, para eles, seja talvez o maior prêmio da passagem para a vida adulta – por tudo o que foi ligado a ele, direta ou indiretamente, a saber, prestígio, prazer, sexo, adrenalina, poder... – que é exatamente a carteira de motorista. Tais locais são também, em muitos casos, onde ocorrem os primeiros verdadeiros (porque na escola e quando criança ainda estamos apenas aprendendo, não é mesmo?) atos de corrupção – afirmativa do sistema; nada melhor do que a expressão “faz parte” para justificar algo que já está institucionalizado –, que nada é a não ser pagar para receber o prêmio sem o mérito para tal. Mas, no fundo, não é um ato contra o mérito e sim ao contrário: comprar a carta é ter mérito, é ser malandro, é ser subversivo sem o ser, é estar em uma categoria superior em relação aos outros: é fazer propaganda da sua própria marca. Você podia ter passado – qualquer um passaria –, mas, por um ato de escolha – quase que – indiferente, você preferiu comprá-la, por não estar mesmo com vontade de fazer a prova, afinal, você reitera, “eu passaria do mesmo jeito. Já dirijo faz três anos”, acrescenta querendo mostrar que o mérito da malandragem, da subversividade assertiva o acompanha – dirige faz três anos ilegalmente –, é intrínsseco a você mesmo. Nada além disso é a cultura, ou hábito tradicional. É talvez a isso que se remeta a frase inicial, mas não só. Talvez cultura seja mais do que um conjunto de hábitos, desejos e fatos sinônimos de uma determinada sociedade; nesse caso, ela também significa aquilo que Adorno caracteriza (bonissimamente), em seu Indústria Cultural – o Iluminismo como mistificação das massas, a saber, a cultura de massa. Auto-escola é cultura, cultura de massa. É estar inserido na alienante indústria cultural. Nesse sentido, pode-se dizer que ultrapassa-se a mera necessidade – e, mais do que isso, o argumento de “confortidão” do automovel – a necessidade de inserção na cultura de massa. Cultura, aqui, parece ter sido usado no sentido vulgar, ou seja, no sentido de conhecimento libertatório, de algo relevante, como que construtivo, no linguajar vulgar. Ora, realmente, há a sensação de liberdade e, sob o aspecto da ideologia individualista, da classe média e da burguesia, dirigir o é veramente. Eleva-nos aos céus da liberdade individualista burguesa – que mal há em reforçar? – como o conhecimento eleva-nos às graças do bem-verdadeiro.

Mas o significado desta frase transcende o sentido literal; é um paradoxo sem as marcas deste – talvez o primeiro metaparadoxo que se conscientiza como tal. O paradoxo é a marca da sociedade industrial. Bem disso sabe Adorno, o qual, no mesmo texto já citado, usa e abusa destes[2]. Esta frase “auto-escola, também é cultura” é um paradoxo, agora está claro, porque formalmente comete um erro grotesco de português ao transpor sujeito e predicado por uma vírgula. Ao mesmo tempo, em seu conteúdo, remete à idéia de cultura, conhecimento. É como se o sujeito que proferiu tal frase dos sinais do tempo fosse o portador – também o portador, ou seja, quer passar a idéia de que apesar de não parecer, ele o é, sim, realmente – de tal conhecimento. Conhecimento, este, que no aspecto formal não é portado, como a própria frase o demonstra. É, assim, um metaparadoxo a medida em que é e não é um paradoxo: é efetivamente, como vimos, enquanto forma e conteúdo; e apenas um erro enquanto forma e não mais que uma idéia enquanto conteúdo apenas. É um paradoxo do paradoxo; é o paradoxo que se conscientiza como tal. Ou antes fosse. Nada há aqui de consciente; o erro não ocorreu por vontade do sujeito. O que antes parecia emancipatório agora suga as últimas forças vitais. É paradoxal que a libertação dos paradoxos, a conscientização de si, seja aprisionante. É que liberta formalmente, aprisiona intrinssecamente. A ainda desconhecida arma contra o sistema, o espelhamento de seu maior poder, já foi destruída antes mesmo de existir. O que podia ser resistência, a negação consciente dentro da afirmação, não se deu. É o pré-vivo que morreu. Corpo humano que perdeu. É, para parafrasear ainda Adorno, o momento posterior ao da vitória das máquinas sobre o humano, da alienação sobre o consciente, da barbárie sobre a civilização.

[1] Nada confirma mais isso do que tal essência ser uma máquina

[2] Alguns exemplos: “A novidade do estágio da cultura de massa em face do liberalismo tardio está na exclusão do novo” (pág. 28); “Seu [indústria cultural] triunfo é duplo: aquilo que expele para fora de si como verdade pode reproduzir-se a seu bel-prazer em si como mentira” (pág. 30); “(...) mas o gênero de mercadoria de arte, que vivia do fato de ser vendida, e de, entretanto, ser invendável, torna-se – hipocritamente – o absolutamente invendável quando o lucro não é mais só a sua intensão, mas o seu princípio exclusivo.” (pág. 65). Todas as citações tiradas de: Adorno, Theodor W.. Indústria cultural e sociedade. In: O Iluminismo como mistificação das massas. Editora Paz e Terra, Coleção Cultura. Traduzido por Julia Elisaveth Levy.

7 comentários:

Giulia T. disse...

paradoxal...

Anônimo disse...

Poxa, visitarei mais o seu blogzitcho, acho que ele é bom pra reafirmar o meu gosto por paraxos não-gostáveis.
Mas em relação ao texto: hum...as máquinas, o carro, a massificação, a indústria cultural, o paradoxo do paradoxo, o paradoxo sozinho, o individualismo reafirmado pelas auto-escolas, a consciência...Ah! espera, me deixa ser um pouco individualista? porque do contrário a minha cabeça vai explodir...
Tô tentando escrever paradoxos conscientes...

Ana Julia Rosas disse...

hey,
eu até tenho palpites sobre quem é você... ams queria saber de verdade: quem é você?
ah, e foram muito bem aproveitados os momentos perdidos para fuçar o seu blog também

Ana Julia Rosas disse...

ah isso é injusto, eu perguntei pra muitas pessoas que já tinham par... e eu num quero chutar e errar quem é você...

Ana Julia Rosas disse...

puxa como eu sou boba... um dos seus amigos te denuncia e eu nem percebi¬¬

mas suspense de vez enquando é legal... quando verei novos textos seus?

Ana Julia Rosas disse...

wow... bastante coisa... é eu deveria estar de férias. Eu estaria se não tivese tirado ferias no meio do ano... peguei 6... e você quando começam as férias?

meu msn é ju_ilove@hotmail.com
(num zoa que é o mesmo a 6 anos)

Cau. disse...

Uma parte desse caos consiste no conceito da individualidade, que é um conceito bom que não sabemos digerir muito bem.
Meu carro, minha vida, meu sustento. EU!!

Hehehe...
O cara se chama Adorno.