sexta-feira, dezembro 21, 2007

Inconveniente

No meio do caminho havia um mendigo. Havia um mendigo no meio do caminho. Imóvel e cinzento como uma pedra, as pessoas naturalmente desviavam-se dele como se desvia de uma poça. Mas essa tinha olhos escuros como o breu, que fixavam o distante, o nada. Estavam secamente molhados, talvez pela sujeira, talvez não. Ele cuspiu e eu pude ver; poucos dentes em contraste ao turbilhão de edifícios que o cercava.

Carros passavam rasgando a realidade – intransigentes –, pessoas apressavam o passo ao avistá-lo – aquele-ser-inconveniente, quase-bicho-pouco-homem – e os semáforos, os letreiros, os faróis, as janelas... Era tanto brilho barulhento, tanto movimento naquela noite – escura noite – e ele sombrio, quieto, sozinho.

Tão rápido que mal pude perceber e por um motivo que nem-sei-bem-qual-foi, senti pena. Estava incomodado, mas não deveria. Sem perceber, joguei uma moeda que bobamente – dissimulada até – caiu em seu colo. Suas unhas sujas tocaram a moeda. Senti um calafrio paralisante nesse momento; eram seus olhos sujos nos meus olhos e a moeda que voltava inesperadamente às minhas mãos. Admito: nada compreendi.

Senti ódio, terror; indecisão. Continuava autoritariamente o caminho inexistente ou enfrentava aquela pergunta dolorosa?

Antes que eu pudesse dizer palavra, foi ele quem disse:

- Enfia no cu essa moeda de merda, meu senhor.

Fiquei sem reação. Sua voz rouca, de pouco uso, e seu ríspido tom nem um pouco irônico foram denúncias da ofensa que sentira. Abaixei a cabeça – por que abaixara a cabeça? – Levantei-a. Quem se sentia ofendido dessa vez era eu. Oras, só tentara ajudá-lo!
Em meio à minha raiva e transtorno, ele continuou:

- Uma moeda a mais é um dia a menos.

Seus sujos olhos, então, voltaram a mirar o infinito inexistente... (continua)

terça-feira, dezembro 18, 2007

A era do ketchup

A modernidade é ketchup. Bem disso sabia Wilson, um ex-dogueiro de uma Kombi em frente a um supermercado de madame. Fora despedido ao ser pego comendo ketchup escondido: Sim caro consumidor desta história, ele era mais um dos milhares de viciados em ketchup. A partir de então, foi visto em muitas madrugadas em imensos supermercados 24 horas a comprar o seu ketchup em meio a jovens comprando bebidas e cigarros. Freqüentar supermercados, como o bom consumidor deve saber, não é um hábito saudável, principalmente àqueles que devem se conter por falta de poder aquisitivo. Wilson, o mais humano dos humanos, começou a entrar em transe em meio a tantos desejos de consumo reprimidos: comidas e mais comidas, produtos de limpeza, temperos, vinhos, sandálias, e até carros de controle remoto! Milhares de produtos que faziam do ketchup insuficiente. Mais grave ainda, nobre consumidor, era o fato de o seu dinheiro haver acabado: nem ketchup poderia mais comprar. Foi visto, então, em muitas madrugadas, a vadiar como um mendigo, de bar em bar pedindo porções gratuitas do imperialista vermelho.

Em uma dessas vadiações, Wilson foi atraído para uma casa suntuosa e com cheiro de ketchup. Mal sabia o homem cujo nome era o mesmo da marca de bolinhas de tênis que ao passar por ela, um grupo de músculos, cochichavam: “Aqui é o melhor puteiro da cidade. Não há no mundo quadril igual ao da Delícia-Vermelha” – e todos concordavam maquinalmente. Era uma luxuosa casinha no estilo Neocolonial americano: Imensas colunas gregas que distorciam de todo um resto barroco clássico, com luminosos multicoloridos. A casa era o sonho de consumo da era do ketchup. Era também uma embalagem bonita para Delícia-Vermelha. A bem da verdade, Delícia-Vermelha era um pote de ketchup: A mesma forma fina até o quadril que se alongava; o mesmo vermelho em seus lábios e em seu vestido e em seus saltos que insulta a uma paixão-adoração; o mesmo sabor viciante; o mesmo prazo de validade. Era o sonho de consumo da modernidade. Nesta noite especialmente, como uma promoção especial, estava em um de seus melhores dias. Era um imenso ketchup delicioso que atraía infinitamente com sua dança do ventre. Ela dançava como uma deusa. Era algo tão chamativo, tão atrativo que nem o mais beato dos beatos resistiria. Até quem já estivesse satisfeito com a sua esposa não estaria apto a fugir das presas do seu feitiço moderno; a propaganda. Delícia-Vermelha seria consumida mais banalmente do que um ketchup, mais simplesmente que um doce comprado na promoção “leve-um-prato-e-ganhe-um-doce”. Poucos perceberam o fato de Delícia-Vermelha não ser apenas uma mulher-produto. Eram várias: várias que seriam sempre substituídas pela indústria pornográfica. Eram a mesma e não eram. Delícia-Vermelha era apenas um símbolo, uma forma, (um ícone do passado, talvez): hoje era reproduzida às milhares. A sociedade moldou a forma dela e agora a produzia em larga escala para que pessoas como Wilson e nossos educados leitores pudessem consumi-la.

E foi isso que ele fez, imitando toda a sociedade. Consumiu-a, em um só instante, em busca da felicidade que não encontraria. E depois nunca mais foi visto: foi engolido e consumido por toda aquela vermelhidão deliciosa e moderna: Wilson finalmente integrou-se fisicamente ao ketchup da modernidade.